terça-feira, 5 de outubro de 2010

Prisioneiro do Agora

Alguns autores referem-se aos DDAs como "prisioneiros do agora". Isso significa que nossas dificuldades de planejamento e adiamento do prazer fazem com que vivamos para o presente.
Tendo vivido uma vida inteira com DDA e sem medicação, este aspecto do transtorno moldou minha vida de modo bastante significativo.
Me lembro de poucos momentos em que estive tão fascinado por alguém do que quando conheci minha esposa.
Estava saindo de um relacionamento conturbado, em que eu não conseguia me comunicar adequadamente, e que me havia feito sofrer bastante. Tinha largado a faculdade, por pura procrastinação: sem as diretrizes e a rédea curta da minha mãe, de cujo lobo frontal eu dependia, fiquei muito perdido, sem ter a menor idéia de como me orientar no cotidiano da faculdade.
Quando eu era criança, só o que se dava para crianças com "disfunção cerebral mínima" era neuleptil, um neuroléptico de difícil desmame e com efeitos colaterais infinitamente mais incômodos que os da Ritalina.
Sem falar que a minha mãe, da geração hippie politizada, suspeitava como muitos à esta época, da instituição da psiquiatria.
Isso me salvou de uma possível discinesia tardia, nos dias de hoje, ou até de coisa pior.
Quando comecei a trabalhar com autismo, estava emergindo da minha própria pequena ruína de entrada na vida adulta: 20 anos, um pequeno casamento desfeito, um curso universitário abandonado, e cursando outro que eu sabia que não correspondia à minha vocação.
Mas, o futuro nunca importou. O que fazia sentido era o que estava ao alcance das mãos. E os autistas estavam ao alcance das mãos.
Se algo tivesse que esperar para fazer sentido para mim, provavelmente NUNCA faria, de modo que tinha de fazer sentido AGORA.
Um ano depois de começar a trabalhar como cuidador de autistas na Casa da Esperança, tive a oportunidade de me aproximar da presidente, a Dra. Fátima Dourado, que já tinha fama na cidade, havia feito um programa na televisão local, ligado à sua área de atuação, Direito da Mulher, e era presidente do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher.
Uma mulher 19 anos mais velha com uma reputação e um nome.
Eu era apenas um sonhador, cheio de ilusões e com uma única coisa concreta para oferecer: Amor. Um amor tão imenso, que não cabia em mim.
Amor por cada um dos garotos autistas que eu cuidava, por cada ser humano que cruzava o meu caminho. Um amor tão gigante, que, no meio dele, eu nem sabia quem eu era. E ainda não sei, e acho que a viagem da vida tem a ver com descobrir.
Muito bem. Esse amor improvável, anormal, reprovável, até (foi antes de relacionamentos entre mulheres maduras e caras mais novos virar moda), não poderia ser vivido por pessoas sensatas.
Foi o que ela tentou me dizer na noite seguinte ao primeiro beijo. E eu, tantas vezes mais inconseqüente, tive que convencê-la de que tínhamos sim, muito o que aprender um com o outro. Não foi uma das coisas mais difíceis que fiz, até porque, falar foi só o começo do argumento.
Mais uma vez, a única coisa que era real para mim, a única coisa imediatamente disponível neste cárcere a que estou confinado, o palpitante AGORA, foi o que usei para conquistar a mulher da minha vida, com quem vivo há 17 anos: O amor.
"Isso não vai durar", disse quem tinha juízo. "E como vocês vão envelhecer juntos?" perguntavam os sensatos. Quem tivesse qualquer capacidade de planejamento, diria não àquela loucura.
Mas não eu. E, por menos que ela admita, ela também não. Nós dois temos diversas qualidades, mas sensatez certamente não é a mais abundante.
Deus é tão generoso, que nos juntamos por impulso (nunca casamos), adotamos duas crianças por impulso (as duas de risco), e nos lançamos de vida inteira num empreendimento arriscadíssimo: prover assistência integrada de saúde e educação a pessoas autistas gratuitamente, pelo SUS.
Adivinhe: tem tudo dado certo. O amor, que graças a Deus nunca parou de se transformar, só cresce com os anos. Nosso primeiro filho, nascido aos 06 meses de gestação, com 1,4 kg, está ótimo, e é um DDA perfeitamente normal. A segunda filha, que tinha suspeita de autismo, também está ótima e sem nenhum diagnóstico, no momento. Os dois garotos autistas do primeiro casamento da Fátima frequentam o espaço que construímos com nosso suor e nosso sangue.
Uma terapeuta uma vez me disse: "você gosta de correr riscos". Eu disse: "tem dado certo". Ela replicou: "É, mas poderia não ter dado". Foi a última vez que nos vimos. Em outos posts, pretendo dizer melhor o que tenho contra gente sensata, mas por ora, basta essa: eles sabem como vão viver. Eles sabem como vão morrer. Ou pensam que sabem. Ou tentam saber, e a vida consiste nisso: um exercício de previsibilidade.
Não eu.
Quero o vento batendo no rosto e dizendo a cada fibra do meu corpo: "não sei".
Antigos sábios dizem que a única coisa que existe é o presente. Se estiverem certos, nós, DDAs, estamos prisioneiros da única realidade que existe.
E os que se proclamam livres, gozam sua liberdade nos domínios da ilusão?
Não sei. Só sei que, se você amar profundamente quem você é, se você ousar ser mais do que uma aberração, talvez o seu sofrimento hoje, seja precisamente o que, amanhã, torna sua vida plena.

2 comentários:

  1. Sensacional o texto, de fato o presente é a única realidade, é onde estamos e onde sempre estaremos, o passado e o futuro são apenas formas ilusórias do presente.

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  2. Ainda estou tentando provessar esse texto mas me tocou extremamente visualizar tantos "eu não sei" aceitos e vividos simplesmente!

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