terça-feira, 5 de outubro de 2010

Balada do Louco

O Louco arquetípico,
quase o cara da carta de Tarot:
Arnaldo Baptista, o autor da música
que salvou a minha vida.
Um dos momentos mais redentores da minha vida foi descobrir a música de Arnaldo Baptista. Ele sempre foi o motor musical do genial grupo "Os Mutantes" uma das bandas brasileiras de rock mais aclamadas mundialmente de todos os tempos.
Quando eu era garoto, a patota me chamava de louco, de pirado, de abestado, e todos estes nomes com que as crianças brindam a diferença.
Se alguém queria me enfurecer, já sabia: era só me chamar de louco. Ou então ridicularizar outro colega da rua, ou da escola. Tinha uma senhora na rua da minha avó, defronte da estação do bairro Otávio Bonfim em Fortaleza, que tinha um caroço, provavelmente um imenso tumor na lateral do pescoço.
Era uma senhora pobre, que vivia de esmolas, e os meninos encasquetaram em chamá-la de Macaúba. Macaúba, para quem não sabe, é uma fruta daqui do Ceará que é um imenso caroço, com alguma polpa doce em volta. Os garotos diziam que a pobre velhinha havia engolido uma Macaúba, daí a alcunha.
Eu ficava enfurecido, porque sentia na minha pele a tristeza da pobre Macaúba (nem lembro mais o nome dela). Atirava pedras nos outros meninos e arrumava brigas terríveis com eles para protegê-la.
Mas se a implicância era comigo, eu podia até ficar perigoso. Sempre impulsivo, o que eu tivesse nas mãos podia ser jogado na sua cabeça, caso você fosse o valentão que me importunasse com apelidos pouco apreciáveis. Um dia, um valentão contumaz, cujo nome eu me recordo até hoje, me provocou para valer. Disse que eu era um doido varrido. Que eu merecia ser trancado num hospício. Que devia ser expulso da escola e estudar numa escola de doidos, e tudo o que você puder imaginar de insultos irritantes. O garoto resolveu me testar.
Peguei uma cadeira e joguei no menino. Antes de aterrissar onde ele estava, pelo caminho, a cadeira arrancou um dos ventiladores de teto da sala de aula. O Coordenador do segundo grau passou na frente da sala neste preciso momento. Suas palavras foram a pá de terra na minha sepultura:

"Você é doido, menino?"
Também nunca esqueci o nome deste coordenador. Fui suspenso da escola. Fiquei de castigo em casa. Nada de rua. Nada de alegria. Eu e o teto branco do meu quarto.
Minha mãe passava e, mesmo sabendo que eu estava de castigo merecido se compadeceu da profunda tristeza que viu em meus olhos e me perguntou o que havia.
"Acho que sou doido mesmo, mãe". Disse eu, entre lágrimas. "Todo mundo acha".
"Vai ver que é",  ela disse. Mas isso não é de todo ruim. E me apresentou uma música, cuja letra reproduzo abaixo:


BALADA DO LOUCO 
Composição: Arnaldo Baptista / Rita Lee
Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu
Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu
Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz

Essa música salvou a minha vida. Através de sua letra, aprendi a me respeitar do jeitinho que eu era: estabanado, desastrado, esquecido, avoado. Por essa época comecei a escrever poemas. Os meninos, pelo menos os mais chegados, deixaram de me chamar de louco e passaram a me chamar de poeta. Mário Quintana uma vez se queixou de morar em um país em que poeta é xingamento e mãe é palavrão.
Eu fiquei feliz, depois de conhecer o trabalho todo de Arnaldo Baptista, em ser poeta. Mesmo quando as pessoas me chamavam assim porque me achavam uma aberração. Passei a ter orgulho da minha loucura.
Essa é, talvez,  a verdadeira raiz da minha repulsa pela normalidade, e não o meu presumido esnobismo intelectual. Pessoas normais sempre me fizeram sofrer com a exclusão e o enxovalho.
Tá na casa do sem jeito: Não sou normal, mesmo. Se alguém gosta de mim, tem que aprender a conviver com certas esquisitices.
Escolher seus amigos dentre os que têm tolerância com suas esquisitices vai moldando você para ser compassivo com as esquisitices alheias também. Foi através do sofrimento psíquico que descobri muitos atalhos para ajudar outras pessoas em psicoterapia, pessoas com depressão, DDA, Transtorno Bipolar.
Foi através de ser "louco", de assumir a minha diferença, antes mesmo de saber que ela tinha um nome, um rótulo, e até remédio para aliviar a parte mais dolorosa; Foi através de aceitar a mim mesmo integralmente, como se aceita um velho e bom amigo cheio de excentricidades, que descobri minha vocação, meu amor, meus amigos... Minha vida, enfim.
Louco é quem me diz que não é feliz.... Eu sou. E penso (ás vezes) que Deus sou eu. ;-)

Ah, e antes que eu me esqueça: O garoto foi mais rápido que eu, e a cadeira só machucou mesmo o ventilador. :-P

3 comentários:

  1. Muito bom, Phul-lah!
    Um grande abraço! :)

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  2. Meu DDA é um pouco diferente, pois não tenho a hiperatividade, mas sempre fui o sonhador e o estranho da turma, nunca me chamaram de louco, mas recebi outros nomes não agradáveis. Agora vejo o porque de tanto livros, canções, roteiros, pinturas, sites, empresas e projetos que eu não dei continuidade.

    Alencar Teixeira
    twitter.com/blogdoalencar

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  3. 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

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