segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um menino esquecido

Eu ia contar a história de um menino esquecido e desorganizado, mas me esqueci de como ele era. A única coisa de que me lembro é de como ele sonhava acordado.
Todos os anos ele elegia uma musa da sala de aula para amar platonicamente. E todos os anos dava um jeito de fazer papel de ridículo na frente dela, apesar de seus esforços na direção oposta.
Ele escrevia poemas, esse garoto. Principalmente sobre as musas, mas também sobre a sua imensa solidão. Triste, naqueles anos. Mas o tempo transforma as coisas de maneiras inusitadas.
Aquela solidão que fora o fardo de seus primeiros anos, tornou-se um bem cuidado jardim, cultivado com esmêro, e extremamente desejado, depois de tanta gente ter necessitado de seu amparo como psicólogo.
Era o alvo dos valentões. Em anos mais recentes, isso se americanizou (nada mais justo, pois os americanos são campeões nesse esporte sádico) e ganhou o apelido internacional de bullying.
Defendia sempre quem estava em posição desfavorável, como ele. Era dono de uma coragem insuspeitada. Franzino, gordinho, suando, nada atrativo ao sexo oposto. Virava uma fera quando os meninos da rua provocavam uma pobre mendiga, a quem alcunhavam de "macaúba" porque ela tinha um grande caroço no pescoço, visível sob a pele. Pedras voavam sobre os valentões. Nenhuma acertava o alvo.
As que eles atiravam de volta, no entanto, eram estranhamente certeiras. Menino triste. Mas tinha, como José, filho de Jacó, retratado na poesia de Caetano Veloso, Um Egito brilhando no umbigo.

> Estou no fundo do poço
> Meu grito lixa o céu seco
> O tempo espicha, mas ouço o eco
> Qual será o Egito que responde
> E se esconde no futuro
> O poço é escuro, mas o Egito resplandece
> No meu umbigo, e o sinal que vejo é esse
> De um fado certo
> Enquanto espero, só comigo e mal comigo
> No umbigo do deserto.

Essas eram palavras e melodia poderosas, que, anos depois da sua infância, embalaram suas precoces frustrações de adulto jovem deprimido.
Uma vez, caiu de amores por uma jovem com Síndrome de Down, ainda no antigo "primário". Seus pais demoravam a vir buscá-la na escola. Ele a fitava, de longe, contemplativo. Em sua mente, via gueixas japonesas tocando alaúde, evocadas pelos olhinhos puxados da pequena. Romântico incorrigível.
Mais tarde, conheceu o amor, e descobriu que era a ele demasiado suscetível. Era brinquedo na mão das musas. Uma musa distante liberta. Uma conquistada, aprisiona. Viveu o temor de ser homem, e de desejar uma mulher. Viveu o oposto das histórias de fada, a negação do amor, na plenitude da vivência deste mesmo amor.
Descobriu que o amor é uma coisa curiosa, que tem muitas realidades, nem todas felizes, e apenas um nome, coisa confusa.
Mas encontrou dentre os amores que viveu, alguns que lhe marcaram e lhe transformaram, pela dor, e pelo deleite.
Encontrou mulher e filhos, o garoto esquecido. Viveu e vive dentro de cada homem, dentro de cada ser criativo, o nerdinho porralouco que virou bicho grilo, e se cansou das máscaras e mergulhou no não-ser, e se tornou quem sempre fora, quando esqueceu que – para além de um garotinho solitário, e triste, e feio, e rejeitado, era um buscador.
Buscava uma verdade que poucos encontram, por seu próprio esforço, mas que encontra a todos, de um modo ou de outro. Buscava o absoluto.
Por isso era difícil, após os anos da sua juventude, dizer com que se parecia. Se era intelectual, ou apenas um simplório idiota; Se era sábio, ou apenas um tolo informado; Se era Grande, ou apenas um pobre coitado. Se era humilde, ou demasiado altaneiro.
Era assim, esse garotinho indefinível, e indeterminado. E assim é.

Alexandre Costa e Silva
segunda-feira, 30 de maio de 2011


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